quinta-feira, 10 de setembro de 2009

...NÃO ME DEIXEM SOFRER...

Luiz Carlos Nogueira

Quantas vezes médicos, familiares, amigos, sacerdotes, devem ter ouvido semelhante apelo desesperado de entes humanos em fases terminais (decorrentes de doenças incuráveis), proferido no leito de morte, no auge do desespero ou no paroxismo da dor — ...não me deixem sofrer...?

Este delicado problema, talvez o grande dilema, tem fustigado a mente e o espírito humano, no mais profundo do seu ser.

No Brasil o médico esbarra nas questões de ordem legal e do Código de Ética Médica.

Por exemplo:

1-) Os direitos fundamentais, no caso em especial, o direito à vida, preconizado pela nossa Constituição Federal de 1988, como está contido em seu Art. 5º:

DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,...:” (destaquei em negrito)

2-) As regras do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940), contidas em seus artigos 121 e 122:
DOS CRIMES CONTRA A VIDA

Homicídio simples

“Art. 121 - Matar alguém:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

Caso de diminuição de pena (homicídio privilegiado)

§ 1º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral (refere-se a sentimento pessoal do agente, como no caso da eutanásia), ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”
(comentei em vermelho)

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

“Art. 122 - Induzir (participação moral; significa dar a idéia do suicídio a alguém que ainda não tinha tido esse pensamento) ou instigar (participação moral; significa reforçar a intenção suicida já existente) alguém (pessoa ou pessoas determinadas) a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça (participação material; significa colaborar materialmente com a prática do suicídio, quer dando instruções, quer emprestando objetos para que a vítima se suicide; essa participação deve ser secundária, acessória, pois se a ajuda for a causa direta e imediata da morte da vítima, o crime será o de ‘homicídio’):

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

Parágrafo único - A pena é duplicada:

Aumento de pena

I - se o crime é praticado por motivo egoístico; (ex.: para ficar com a herança da vítima, ou com o seu porto ou cargo);
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de
resistência. (ex.: vítima está com depressão, altamente alcoolizada ou embriagada, etc.).”
(comentei em vermelho)

No entanto, é necessário fazer aqui uma pequena digressão, para informar que no Brasil, em alguns casos, o próprio Estado permite que uma pessoa pratique, legitimamente, condutas que venham a retirar a vida de outrem, como no estado de necessidade, legítima defesa e aborto legal.

Há outros casos contemplados dentro da nossa Constituição Federal, nos quais não podemos considerar isoladamente o direito à vida, por exemplo:

— A questão da dignidade do ser humano, que encontra amparo no artigo 1º, III;
— a proibição de tratamento desumano ou degradante, disposto no artigo 5º, III;
— a privação de direito por motivo de crença religiosa, encontrado no artigo 5º, VIII, dentre outros.

Eis aqui o que provoca divergências de pontos de vista. Ao mesmo tempo em que a nossa Constituição prevê a indisponibilidade da vida humana, indaga-se até que ponto é possível considerar se alguém tem vida digna, quando se trata de paciente em estado vegetativo, ou em coma irreversível?

3-) As regras do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.246/88, DE 08.01.88
(D.O.U 26.01.88):

“Art. 6° - O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.”

4-) As questões de ordem religiosa, como por exemplo:

a-) A Igreja Católica é decisivamente contrária à pratica da eutanásia ativa (ato de administrar drogas para promover morte rápida e indolor a um doente incurável para pôr fim ao seu sofrimento, ou direito de se ter a morte assim abreviada ou de se matar alguém por esta razão), assim como da distanásia (decisão de renunciar ao que chamam de excesso terapêutico, para manter à todo custo, a vida do paciente, mediante recursos heróicos).

Vejamos, pois, a Declaração sobre a Eutanásia, emanada da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, em 05-05-1980:

“[..]

Por eutanásia, entendemos uma acção ou omissão que, por sua natureza ou nas intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda a dor. A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregados.

Ora, é necessário declarar uma vez mais, com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para um outro confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade.

Pode acontecer que dores prolongadas e insuportáveis, razões de ordem afectiva ou vários outros motivos, levem alguém a julgar que pode legitimamente pedir a morte para si ou dá-la a outros. Embora em tais casos a responsabilidade possa ficar atenuada ou até não existir, o erro de juízo da consciência — mesmo de boa fé — não modifica a natureza deste gesto homicida que, em si, permanece sempre inaceitável. As súplicas dos doentes muito graves que, por vezes, pedem a morte, não devem ser compreendidas como expressão duma verdadeira vontade de eutanásia; nestes casos são quase sempre pedidos angustiados de ajuda e de afecto. Para além dos cuidados médicos, aquilo de que o doente tem necessidade é de amor, de calor humano e sobrenatural, que podem e devem dar-lhe todos os que o rodeiam, pais e filhos, médicos e enfermeiros.
[...]
Segundo a doutrina cristã, a dor, sobretudo nos últimos momentos da vida, assume um significado particular no plano salvífico de Deus; é, com efeito, uma participação na Paixão de Cristo e união com o sacrifício redentor que Ele ofereceu em obediência à vontade do Pai.

Por isso, não deve surpreender que alguns cristãos desejem moderar o uso dos medicamentos analgésicos, para aceitar voluntariamente, ao menos uma parte dos seus sofrimentos e se associar assim com plena consciência aos sofrimentos de Cristo crucificado (cf. Mt. 27, 34).”
Ratificando a Declaração sobre a Eutanásia, e melhor definindo o termo, o Papa João Paulo II, editou em 25-03-1995, a Carta Encíclica Evangelium Vitae, que transcrevemos parte dela como segue:
“65. Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ». 76

Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não Evangelium vitae - Ioannes Paulus PP. II - Carta Encíclica (1995.03.25) Page 44 of 72 proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ». 77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte. 78

Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». 79 É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende-se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. 82
A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio”.

b-) O Islamismo, veda no Alcorão Sagrado, em sua 5ª Surata, Versículo 3, o morticínio, e por conseguinte, assegura o direito de preservar a vida.

Também a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 19-09-1981, assegura o direito à vida, conforme está previsto no item I, letra a., conforme transcrição:

“I – Direito à Vida

a. A vida humana é sagrada e inviolável e todo esforço deverá ser feito para protegê-la. Em especial, ninguém será exposto a danos ou à morte, a não ser sob a autoridade da Lei.”

c-) O Judaísmo. Podemos encontrar no site da CIP Congregação Israelita Paulista (http://www.cip.org.br/porques/pergunta.jsp?id=262), a informação de que “o Judaismo proíbe categoricamente a eutanásia ativa, pois ela é vista como um verdadeiro homicídio. No caso da eutanásia passiva, embora ela não seja livremente permitida, também não é de todo condenada. O Judaísmo afirma incondicionalmente a santidade da vida. Entretanto, quando a vida se torna vegetativa, a "santidade" da mesma pode ser questionada. Em casos extremos, quando o sofrimento inútil está sendo prolongado por meios artificiais... quando a vida nem é mais vida... a eutanásia passiva pode eventualmente ser válida.

Na tradição judaica, Deus é considerado o ‘Supremo Poder de Cura’, enquanto que o médico é visto como um agente de Deus a serviço da humanidade. A lei judaica endossa portanto a decisão do médico, que naturalmente depende das circunstâncias específicas de cada caso. Confiando na sua competência profissional e nos ditames da sua consciência, o Judaísmo dá a palavra final ao médico... de preferência, em acordo com o rabino.”

A Dra. Elisabeth Kubler-Ross (psiquiátra), em sua obra Morte: estágio final da evolução. Rio de Janeiro: Record, 1975, p.73, aponta dois momentos ou fases da morte, conforme o posicionamento judeu, de que:

“Durante a primeira fase, todos os esforços — não importam o quão extraordinários sejam — devem ser feitos para sustentar a vida e prolongá-la. A situação varia na segunda e final fase.”

Desta forma, a eutanásia ativa é considerada assassinato, por conseguinte — proibida. Porém, a tradição hebraica (halakhah) considera que o prolongamento da vida — é obrigatório, mas não o prolongamento da agonia.

Segundo a Dra. Elisabeth, o Rabino Immanuel Jakobovits ensina que:

“A lei judaica autoriza, talvez até exija, o afastamento de qualquer fator — estranho ao próprio paciente ou não — que possa artificialmente retardar sua partida na fase final. Pode-se argumentar que tal modificação implica a legalidade de apressar a morte de um doente incurável em agonia aguda retirando-lhe os medicamentos que lhe mantêm a continuidade da vida por meios artificiais — caso também considerado na filosofia moral católica. Nossas fontes apenas se referem a casos nos quais é esperada morte iminente; portanto, não está completamente claro se tolerariam esta moderada forma de eutanásia – embora isto possa não ser excluído.”

d-) O Budismo entende que a morte não representa o fim da vida. Para os budistas a morte é uma simples transição de um estado para outro, de forma que pelo suicídio não se escapa da vida que continua de certo modo.

Por isso, em princípio, o suicídio foi condenado como uma ação imprópria pela comunidade dos seguidores de Buda, denominada sangha. Porém, os textos budistas mais atuais mencionam casos de suicídio que o próprio Buda aceitou e perdoou. Por exemplo, os suicídios que foram cometidos por causa de enfermidades dolorosas e irreversíveis.

Todavia, carece observar que a aceitação de Buda dos atos suicidas, não se baseia simplesmente por que as pessoas estavam em estado terminal, mas sim porque estavam com as mentes livres de egoísmo e de desejos, e iluminadas no momento da morte. O importante para eles, não é se o corpo vive ou morre — mas se a mente está em paz e harmonia. Em face disso reconhecem o direito de as pessoas deliberarem quando deveriam passar para outra existência.

A tradição Jodo (a terra pura) sempre deu ênfase à continuidade da vida, enquanto a tradição Zen, aponta a importância do momento e a maneira de morrer. Os budistas japoneses não se preocupam com a morte. Eles valorizavam mais a paz da mente e a honra da vida, do que uma longa vida.

Para finalizar, os que são favoráveis à eutanásia, argumentam que esta tal prática é uma forma evitar a dor e o sofrimento de pessoas em fase terminal ou sem qualidade de vida. Tais argumentos se baseiam nas experiências com doenças de intenso sofrimento, com quadros clínicos irreversíveis, os quais eliminam o prazer e o sentido da vida para algumas pessoas, que nessas condições, não raro clamam: ...não me deixem sofrer...!!

Afirma-se que o direito de se manter vivo é um dos direitos de maior fundamento que possuímos, e que se temos direito à vida, também temos o direito de decidir sobre a nossa morte. Se não temos qualidade de vida, não há razão para prolongar o intenso sofrimento. Para os que assim argumentam, a vida longa não é sinônimo de viver bem — viver bem é ter uma boa qualidade de vida.

Segundo a professora de antropologia e diretora da Associação Internacional de Bioética, Débora Diniz, "eutanásia não é assassinato. Viver é sempre fazer escolhas, inclusive a escolha de decidir morrer”.

Para ela há dois princípios éticos que devem ser levados em consideração para decidir sobre a própria morte, quais sejam:

— o princípio da dignidade, segundo o qual não se pode considerar vida digna a de uma pessoa que não consegue executar mais suas funções vitais sozinha, e que não tem consciência do que se passa ao seu redor. Ou seja, a pessoa nessas condições, nem sabe que existe;

— o princípio da autonomia, pois a eutanásia deve ser compreendia como o exercício de um direito individual. É a garantia do cuidado a que as pessoas têm direitos, no que inclui o direito de morrer.

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